sexta-feira, 26 de março de 2021

#14. (MOSCOVO, 1952 -- OS DESMEMORIADOS) (Jorge Amado, 1912-1001)


Ilya Eremburg e eu chegamos silenciosos de uma conversa com figuras gradas nos altos escalões a propósito de nosso amigo Jan Drda, atendendo pedido que ele me fez em Praga de onde venho para receber o Prêmio Internacional Estaline da Paz: o prêmio me credencia. Estamos em Janeiro de 1952, vinte graus abaixo de zero, vento gélido varre as ruas de Moscovo, emborcamos os cálices de vodca no apartamento da rua Gorki, Ilya me diz: Jorge, somos escritores que jamais poderemos escrever memórias, sabemos de mais. No abalo da conversa que acabamos de ter, balanço a cabeça concordando.

Afirmação categórica não impediu que, alguns anos depois, durante o período de Krushtchev, ao se abrir uma brecha no obscurantismo soviético, ao despontar de uma pequena luz no meio das trevas,o autor de Degelo publicasse sete tomos de memórias, sete, nada menos: no sétimo Zélia e eu figuramos, simpáticos personagens. E isso não é tudo, pois Irina me contou, em 1988, estar pondo em ordem os papéis do pai com o fim de editar vários volumes de memórias inéditas que ele não conseguiu publicar sequer durante a abertura de Krushtchev: Ilya sabia de mais.

Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e conseqüencias, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a se triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga conseqüência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotação, morrem comigo.» 

Navegação de Cabotagem (1992)

Nota: Trata-se do primeiro fragmento destas memórias propositadamente desconjuntadas, que se lêem dum trago. Leio-o também como um aviso à navegação por ocasião da debâcle soviética, para quantos pudesse andar à cata de episódios sórdidos relacionados com o Partido -- a maiúscula e o sentido de compromisso mantêm-se. O mal-estar concentracionário do pesadelo estalinista -- é difícil imaginar algo tão avesso ao tropicalismo solar de Jorge Amado -- está bem vincado, não pelo que diz, mas pelo que transpira; não há nada mais desonroso do que ser considerado como um trânsfuga; e depois Jorge Amado, por generosidade ingénua e voluntarismo, foi um arauto desastrado desse mesmo estalinismo; e ele não o nega. Felizmente a sua obra em geral vale muito mais que isso; mesmo quando errado, esteve sempre do lado certo no que respeita ao seu Brasil. E é esse Brasil miscigenado, violento, alegre, injusto, brutal em tudo o que tem de bom e de mau; são obras-primas do romance como Mar Morto (1936), Gabriela, Cravo e Canela (1958) -- resposta elevadíssima do ponto de vista literário e ideológico a todos quanto, depois de O Mundo da Paz (um desastre propagandístico de louvação a Stalin, 1951) ou Os Subterrâneos da Liberdade (1954), veio clamar que Jorge se tinha aburguesado; se tal sucedeu ou não, é assaz irrelevante para o escritor, que é o que interessa; todavia se houve coisa de que el se não absteve foi o de travar, sempre, o bom combate. Tenda dos Milagres (1969) -- o primeiro que li, e parece que o seu preferido -- aí está para o demonstrar; a propósito do qual um crítico exigente exarou: "Jorge Amado em estado de graça".

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

#13. COMO SE PERDE UMA «REPORTAGEM» (Artur Portela, 1901-1959)


Estava no Funchal havia quinze dias. Levara um encargo fácil. Entrevistar Norton de Matos, que vinha pela primeira vez à metrópole depois de ter exercido o cargo de Alto Comissário de Angola. O antigo ministro da União Sagrada era, nesse tempo, uma figura discutidíssima. A política dos partidos dilacerava a sua obra colonial. Vinha defender-se a Lisboa e, como depois se verificou, renunciar ao seu cargo. Estes factos tornavam interessante um entrevista em primeira mão. Da sua oportunidade julgou o Diário de Lisboa pagando-me uma 1.ª classe, na Insulana, até ao Funchal.

No dia em que devia fundear no porto o navio onde viajava Norton de Matos, encontrei Rocha Júnior. Contive a minha surpresa. Era um competidor. Bebemos os cálices de Madeira do encontro, Falou-se de Lisboa, sem saudade, e, do assunto que nos reunia, com cautela. Éramos dois concorrentes, batendo o mesmo terreno. Íamos travar um match de reportagem, nada pessoal, mas jornalístico. O primeiro que entrevistasse Norton de matos podia cantar vitória. Pela minha parte tinha que a obter pondo em jogo todos os recursos, todos os processos. Se o diário de Lisboa, na mesma tarde em que Norton de Matos passava na Madeira, não publicasse o telegrama súmula da entrevista, no outro dia, o Diário de Notícias, por intermédio de Rocha Júnior, publicá-lo-ia como caixa, abalando, assim - julgava eu nesse sarampo ingénuo do jornalismo -- os meus créditos de repórter.

Era necessário ganhar tempo, iludir o terrível inimigo de ocasião.

Preparei as coisas de tal modo que o gasolina de saúde onde ia, e que Rocha Júnior quis aproveitar, não partiu do molhe, como de costume, mas de um local afastado a Pontinha, e sem o emblema sanitário.

O gasolina voava nas águas do porto. Como sempre, foi o primeiro barco a atracar. O meu contentamento não teve limites. Vencera a regata. Era metade da vitória. Subi a escada do portaló do África, furei por entre os curiosos de ver terra, até encontrar Norton de Matos que, em cima, no deck superior, falava com o comandante do navio. Fiz a entrevista, rápida, concisa, e, valha a verdade que se diga, bem pouco sensacional. Cifras astronómicas, oleaginosas escorregadias, questões de trabalho indígena, em perpétuo descanso colonizador... À despedida, no aperto de mão que troquei com Norton de Matos, o meu olhar, por acaso, resvalou na amurada do navio. Quem havia de ver? Rocha Júnior, fleumático, superior, que, para marcar bem o seu desagrado e, talvez, o seu ressentimento, não quisera interromper com a sua a minha entrevista. Quando passei por ele, não trocámos uma única palavra. Ràpidamente, contando minutos, segundo, noutro gasolina que cortava ansioso as águas, abalroando com as embarcações que formigavam à roda do navio, alcancei terra. Subi a pulso a escada de ferro do molhe - vertical, perigosa, escorregadia de trinta e tantos degraus. Célere, redigi o telegrama. Pensei ainda utilizar a T.S.F. Mas para quê? Em poucas horas, pelo telégrafo, a entrevista chegaria ao seu destino com tempo suficiente para ser publicada no Diário de Lisboa.

Esta certeza embriagou-me.

-- Que «caixa»! Que grande «caixa»! -- dizia eu para o Miguel Martins, meu secretário de amizade, sorveteando um gelado, prazer que ele consentia depois de ter verificado o estado de degelo das finanças da reportagem.

Pobre caixa! Era de papelão! Calculara tudo, menos a diferença da hora meridiana. O meu telegrama chegou a Lisboa já depois do jornal fechado. O Diário de Notícias, no outro dia, revelava a almejada entrevista com Norton de Matos, tornando 12 horas mais velha a que o Diário de Lisboa publicava nessa mesma tarde.

E Rocha Júnior?... Não guardou ressentimento. Elegantemente soube escondê-lo e atenuar, sem ironia, a sua fulminante vitória.

in Uma Hora de Jornalismo -- Aspectos, Anedotas e Inconfidências da Vida Profissional,

Caixa de Previdência do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa,

Lisboa, 1928

Nota - Um episódio anedótico dos tempos heróicos do jornalismo, nem rádio havia, um retrato do espírito competitivo de então, em que era preciso dar a notícia primeiro. As coisas não mudaram, diria. Tanto Portela como Rocha Júnior eram literatos, além de jornalistas. Como ficcionistas, prefiro o homem do Diário de Notícias ao do Diário de Lisboa, o melhor jornal que já se fez entre nós.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

#12. JOÃO DE DEUS (Fialho de Almeida, 1857-1911)


 Meu amigo:

Pergunta-me o que penso de João de Deus e da sua festa. Vou dizer-lho em meia dúzia de palavras. Em João de Deus há três grandezas: a intelectual, sintetizada na Cartilha e em certos clarões da prodigiosa lucidez que aviva o seu cavaco; a afectiva, que está completa em quinze ou vinte composições da obra poética, e que são o que a poesia lírica conta de mais puro e belo na literatura de todo o mundo; e finalmente a moral, de que é penhor uma vida singularmente simples, e digna, pela perfeita coesão das virtudes, de servir de base a uma religião.

A ideia dum preito cívico a esta figura trìplicemente olímpica, e provàvelmente rara no mundo europeu contemporâneo, onde o método substitui o talento, o cabotinismo, a emoção, e onde a pureza moral (na maior parte dos casos) é apenas prospecto de egoísmos ferocíssimos, resume em si, sem dúvida, um grande uníssono de protesto contra a sórdida estupidez geral, e parece dum povo cioso de inaugurar na sua história, idades de oiro, e de reaver para si grandes fins de pensamento.

Partiu de rapazes, como era de ordem, e agregaram-se-lhe todas as unidades obrantes da nação. Quando isto vi, julguei chegado o dia inverosímil da justiça, e vim para a rua perscrutar no sacre do poeta a páscoa de espíritos tão cara aos meus sonhos de falansteriano enfermo de esperança. De todas as escolas do país viera mocidade, e nos ares troantes de vivório esvoaçavam capas e batinas sobraçando guitarras de faias e presuntos suprimidos no restaurante do Entroncamento. escutei as canções: eram em vez de apoteoses ao poeta, roufenhos fados como as vielas conhecem, sentimentalizando o crime e o rameirismo, dizendo injúrias aos passantes, confundindo democracia com anarquia; e em evangelho, como hausto de independência juvenil, um esbandalhamento parvo e de mau gosto. De sorte que os laços no ombro, em vez de especialidades científicas pareciam antes assinar ganadarias; mas podia ser que assembleiada no cenáculo, toda aquela dispersão de senso usual viesse a furo, despejando as almas do apostema trocista -- tão fora de propósito! -- e resgatando a deplorável demência por algum repto literário onde a mocidade provasse ter vindo à festa imbuída da realeza sem par do egrégio festejado. Ah, meu amigo! que vai você dizer se eu lhe contar que todo esse triplo extracto de campeões futuros da pátria portuguesa, é bem melhor à viola que ao discurso, lançando capas à Palmira Bastos, do que explicando a obra do João; alguns nem lhe sabiam o nome, diziam João dos Dedos; e quando por entre os discursos parolosos da solércia idiota dos loquazes, advieram poetas a enramar-lhe a fronte de lauréis, não imagina você que poesias, e como à desvergonha de ignorar o mestre, se jungia o escárnio de lhe cuspir o génio em versos de cordel! 

Não tenho tempo para circunstancialmente esmiuçar tudo o que vi, mas sempre lhe direi que nas festas do João só me pareceu de boa-fé o festejado.

O resto, amigo, é parasitismo desabusado e eterno dos mexilhões no casco dos navios: uns, doidivanas, caçando no aniversário pretextos de bródio e vadiagem ruidosa -- caso dos escolares; outros, cabotinos, à coca de especular coa glória alheia, e refiro-me aos ministros, ao rei, e aos literatos, que nesta comédia desenvolveram uma sofrível falta de pudor; e finalmente -- esse fundo de população sem pátria moral, cobardia, ignorante e esparvoída, que grita quando ouve gritar, diz mal quando ouve dizer, e se chama o público, e é por toda a parte lama, lixo e escória desprezível.

-- Que deu afinal a festa do João? dirá você. Berros, falta de loiça nas casas de pasto, e a aptidão reconhecida da mocidade escolar para os serviços do tiro, o que aproveita talvez á companhia dos americanos. Consequências literárias: a influência das Flores do Campo na poesia nacional seguirá nula; à uma o público não o conhece, a sensibilidade lírica embotou-se e fez lugar aos grosseiros apetites; e por outro lado falta talento entre os poetas, deram em imitadores e nem sequer tiveram a probidade. Consequências pedagógicas: as poucas pessoas que ele ensinou a ler vão-no esquecendo, pois, com a literatura da terra, não saber combinar o alfabeto é estar preservado dum contágio. Consequências morais, inda piores e mais contraproducentes; com a sua isenção das grandezas, o desprezo do dinheiro, e a nivelação de todos perante a confiança e bondade do seu trato, João de deus é um ser quase prejudicial no meio contemporâneo, e vale-lhe a reclusão: aliás já um decreto o teria suprimido por adversário das instituições.


Nota - Do livro póstumo Figuras de Destaque (1924), um extirpar de escrófulas com incisão de bisturi sem anestésico, uma violência inaudita, que nem em Camilo ou Raul Proença, um desencanto feroz.




segunda-feira, 17 de junho de 2019

#11. A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO D'ÁGUA (Vinicius de Moraes, 1913-1980)

Em dois tentos simples, Jorge Amado acaba de escrever o que para mim é o melhor romance e a melhor novela da literatura brasileira: Gabriela, Cravo e Canela e A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, publicada, esta, no número de junho da revista Senhor. Para tirar teima, ainda andei pegando êsses últimos dias Dom Casmurro e Quincas Borba e uma série de contos do velho Machado; um mais fino estilista, sem dúvida, o escritor carioca, com a graça da sua silogística cinzenta e a sua paciente ordenação das personagens no tempo e no espaço. O baiano, apesar do apuro que, pouco a pouco, está também atingindo, ainda se espoja no sumo de sua linguagem, ainda brinca em serviço, como se diz. E felizmente o faz! Pois se é verdadeiro dizer que o estilo é o homem, temos que Machado é mais estilo que homem, e Jorge Amado mais homem que estilo. E esta é, em última instância, pelo menos a meu ver, a classe de escritores que realmente fecundam a língua que realmente libertam as personagens da sua própria teia psicológica e as fazem saltar, vivas e ardentes, para o lado de cá do livro. 
Não somos um país de grandes prosadores. Alguns dos melhores são, a meu ver, poetas como Bandeira e Drummond, ou poetas a ser, como Rubem Braga, que é para mim, neste momento -- em que pese a freqüente displicência que a obrigação da crônica diária lhe traz -- o melhor prosador do idioma. Digo prosa, entenda-se bem. Grandes romancistas nós os temos, alguns aliando à vocação qualidades ímpares de estilo; e, infelizmente, nesta linha, o maior dêles, na minha opinião, morreu: Graciliano Ramos. Mas a maioria dos que procuraram narrar com estilo, nas pegadas do velho Machado, ou por imperativo de sua própria condição de escritor, secaram a língua, fizeram dela não um saboroso pão, cheiroso e de sustância; produziram finos biscoitos quebradiços que se prova uma vez com delícia, mas cuja repetição resulta enjoativa. A êsses prefiro francamente a incúria estilística de um José Lins, de um Jorge Amado da primeira fase, de um Otávio de Faria, que se prejudica o prazer sibarita da leitura de sandálias, em nada lhes subtrai a capacidade de criar mundos de romance onde as personagens "vivem".
Eu acho francamente belo o crescimento de um escritor como Jorge Amado, que vem desde um livro cheio de defeitos como O País do Carnaval até essa obra-prima que é A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água. Um crescimento verdadeiro como a vida, que vem de baixo para cima e sem se recusar às torpitudes; não um crescimento decorativo de araucária, mas de árvore que dá fronde e que dá frutos de polpa, que dá parasitas e dá passarinhos: uma gorda e resinosa mangueira. E que melhor comparação, para o deleite da leitura dêsse baiano da peste, que o de comer mangas, os dentes mordendo fundo a carne da fruta, a terebentina escorrendo pelo queixo no seu amarelo pungente, a gulodice de enxugar o caroço até o fim...
Saí da leitura dessa extraordinária novela, eu que andava no maior fastio de literatura, com a mesma sensação que tive, e que nunca mais se repetiu, ao ler os grandes romances e novelas dos mestres russos do século 19, Pushkin, Dostoievski, Tolstoi, Gogol especialmente. Uma sensação de bem-estar físico e espiritual como só dão os prazeres do copo e da mesa, quando se está com sêde ou fome, e os da cama, quando se ama. Ela representa dentro da novelística brasileira, onde já há cimos consideráveis, um cume máximo. Um cume que todos os escritores jovens devem ter em mira, numa sadia inveja e num saudável desejo de ultrapassá-lo. E tanto pior se o não fizerem.


Vinicius de Moraes

(Publicado inicialmente em Última Hora, Rio de Janeiro, 1959)

Jorge Amado Povo e Terra -- 40 Anos de Literatura, prefácio de José de Barros Martins, São Paulo, Livraria Martins Editora, 1971.


quinta-feira, 14 de março de 2019

#10. O RENASCIMENTO DA FICÇÃO EM PROSA COM O ROMANTISMO (Pe. Manuel Antunes, 1918-1985)


Estava na dialéctica da história que a prosa de ficção renascesse com o Romantismo. Com efeito, em contraposição classicizante dos séculos XVI-XVIII, a literatura medieval foi extraordinariamente fecunda no género ficção, quer em verso quer em prosa. Ora, pretendendo o Romantismo ressuscitar a Idade Média -- como a Renascença pretendera ressuscitar a antiguidade -- era natural que nºao deixasse no esquecimento uma forma que, por tantos títulos, estava no centro mesmo das suas preocupações como das mais aptas para expressar a nova maneira de sentir.
O mundo heleno-romano não ignorara, de certo, a ficção em prosa. Porém a novela só tarde, muito tarde, surgiu no horizonte da sua cultura. E surgiu não em grandes obras mas em obras menores de secundaríssima importância, à excepção de uma ou duas que se salvam do quase universal naufrágio: Dáfnis e Cloé, a novela pastoril de Longo, que tanta influência -- directa ou indirecta -- havia de ter na constituição do género entre os neo-clássicos das literaturas modernas, e o Satyricon, atribuído a Petrónio, primeiro romance de costumes em que a sátira se aliava ao realismo. O povo grego -- tão poderosamente mitificador -- preferia fixar as suas criações míticas na poesia -- a epopeia e a tragédia, os géneros de coturno, por excelência -- e deixar a prosa para a utilidade: a história, a eloquência e o ensaio doutrinal. E os romanos seguiram-lhe as pisadas. Muito menos criadores que os gregos, limitaram-se quase só a reproduzir e, no melhor dos casos, a desenvolver os géneros fixados por estes. Com excepção de um, a sátira: «Satura tota nostra est», , diz ufanamente Quintiliano. Nestas condições, não é de estranhar que, tanto na Hélade como em Rome, os preceptistas sejam totalmente omissos acerca da literatura de ficção.
Com a Idade Média quase desapareceu ou, ao menos, passa para segundo plano, a mitologia clássica. Em lugar desta instala-se a mitologia nórdica, mais vaga, mais indefinida, mais brumosa e, por isso mesmo, aparentemente mais conciliável com o Cristianismo, a religião vencedora dos deuses antigos. Mais inocente também, menos gasta e em perfeito acordo com a nova geografia da cultura. Por outro lado o agiografismo maravilhoso -- os medievais tinham uma predilecção pelos «santos românticos», multiplicando as vidas de Maria Madalena, de Tais, de Maria Egipciana (prostitutas e santas) e as histórias de anacoretas do ermo --, a influência dos contistas árabes, a cavalaria como forma superior do heroísmo e da aventura, e a nova concepção do amor «cortês», ajudaram a criar o clima favorável è eclosão, quase simultânea de uma vasta literatura novelesca tanto em verso como em prosa. Porquê também em prosa? Não é agora o momento de o discutir. Contentemo-nos com assinalar o facto.
Com o Renascimento opera-se um regresso ao mundo antigo e, de novo, a prosa de ficção regressa também ao segundo plano. Sem dúvida, ao longo do século XVI, ela consegue ainda subsistir, vivaz. Mas isso vem-lhe, em parte, da força adquirida na encarnação do temperamento peninsular e, em parte, do novo sangue que lhe é transfundido pela novela pastoril, esta de remota origem helenística. Depois, durante os séculos XVII e XVIII, os géneros clássicos impõem o seu prestígio, e a literatura, progressivamente, academiza-se. Os tempos estavam maduros para uma revolução. E esta veio, embora, como quase sempre sucede connosco, inspirada de fora, pedida contudo, talvez mais que nenhuma outra, pelas nossas próprias necessidades internas.
Por sobre os três séculos neoclássicos o Romantismo vai buscar à Idade Média os seus temas, os seus géneros, a sua mitologia, a sua «inspiração». Não só isso. Pelo mesmo movimento, o Romantismo quer regressar ao povo, aos costumes, às lendas e às tradições do povo; quer regressar á Terra, àquilo a que hoje se chamaria, mais cientificamente, o «inconsciente colectivo». Retorno ao povo e à Terra, retorno ao Homem. À interioridade e ao sonho, como às forças irracionais, primitivas e criadoras do Homem. Tudo isto implicava uma nova sensibilidade metafísica e uma nova gnoseologia estética. De facto, ao passo que o Classicismo sentia a existência como ser, o Romantismo sente-a como devir; ao passo que o Classicismo estabelecia o primado da razão ordenadora e imitadora, o Romantismo encontra na imaginação e no sentimento as faculdades-mestras do escritor.
Todas as direcções do movimento romântico levam, pois, em linha recta, a uma renascença da ficção, nomeadamente da ficção em prosa. Porquê da ficção em prosa?
Porque havia o exemplo ilustre medieval e quinhentista; porque a prosa, tornada maleável e rica ao longo dos séculos clássicos, estava apta para, vitalizada, se converter em óptimo veículo da nova sensibilidade; porque um século burguês dificilmente aceitaria assim generalizado o coturno da epopeia -- e uma das flechas do Romantismo aponta ao contemporâneo, ao presente.
A prosa novelesca romântica desenvolver-se-á, em consequência, numa dupla linha: histórica e sentimental. Histórica e sentimental logo na primeira geração com Garrett e Herculano (Garrett, clássico por educação e romântico por temperamento, realiza-se melhor na linha sentimental; Herculano, romântico por educação e clássico por temperamento, encontra-se mais na linha histórica); histórica e sentimental ainda na segunda geração, como Rebelo da Silva, Camilo Castelo Branco e, em parte, Júlio Dinis.
Determinar, mais em concreto, o sentido e o valor desse renascimento da prosa em ficção com o Romantismo é assunto demasiado vasto para os limites dum simples artigo.


Nota - Publicado em Estrada Larga, suplemento literário de O Comércio do Porto (1956), coligido por Maria Ivone de Ornellas de Andrade  in Legómena -- Textos de Teoria e Crítica Literária, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. Artigo de jornal que é uma obra mestra de concisão -- em que tudo o que é importante é referido --,  e profundidade, pois cada período é passível de suscitar um ensaio.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

#9. "Anhanguera (não) sou." (James Anhanguera)

Anhanguera (não) sou. Vicção: Bartolomeu Bueno da Silva foi português q viveu no século XVII europeu & comandou uma expedição bandeirante ao território americano inexplorado pelos brancos para lá dos limites permitidos aos portugueses pelo tratado de Tordesilhas.
Essas incursões no coração do continente eram muito frequentes nessa altura. Entradas partidas do Rio & bandeiras de São Paulo foram os primeiros contatos dos lusitanos com a anti civilização da selva tropical sul-americana, q alargaram o seu espaço de dominação cada vez mais paralém do limite acordado pelos almirantes ibéricos no tratado do fim do séc. XV.
Dominação e exploração são palavras boas para definir a consequência do nascimento da colônia imperial do Pau Brasil, cor fogoembraza no imenso verde da mata virgem, «primitiva» como reza a História oficial branca. História q descreve o nascimento da multinação brasileira com o alargamento progressivo das suas fronteiras -- d Ilha de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz a Brasil -- como se fala da distância entre a luz e as trevas, para traz ou para a frente da (agri)cultura cristã dos marinheiros & comerciantes europeus as incontáveis agriculturas celestes da civilização intemporal do cipó.
O filme Aguirre, o conquistador, d W. Herzog, narra a viagem ao interior q corroía os colonos encuanto conquistavam horizontes q a sua vista cansada da civilização ocidental do medo mal descortinava. Ali, no inferno temido, caminhavam ao encontro do paraíso perdido, aqui. E desencontravam-se no cruzamento entre a sua imaginação e o real, entre o seu real e o fantástico: a imagem pura. Contra o cemitério d palavras crescente no velho continente: a loucura, o puro ser, a vida no fim da morte & na cabeça, pela boca, olhos, narinas e orelhas, como diria Caetano Veloso, os arquétipos da civilização do metal, luz do sol (da) sua vida.
Duas realidades distintas num diálogo d surdos: uma tentando sobrepôr-se à outra sem pensar compreendê-la, destruindo-a para nela criar o seu tesouro e construir a sua floresta d metal. Durante dez anos, numa viagem pelas terras do interior onde viria a ser fundado o Estado d Minas Gerais ao longo de parte da q hoje é chamada a Região Centro-Oeste, Fernão Dias Pais Leme e a sua patrulha d quatro mil bandeirantes procuraram mitológicas esmeraldas. Morreu d regresso a São Paulo com uma carga d pepitas verdes q imaginara as outras pedras mais preciosas e ficou na memória & num poema d Olavo Bilac como "O Caçador d Esmeraldas". Depois dele surgiram, para lá d a serra da Mantiqueira, pelos infindáveis montes do actual Estado d Minas, as brancas cidades barrocas d ouro e pedras preciosas feitas daquela terra rica, sobre ela e contra ela construídas.
Durante a sua incursão, o capitão d bandeira B. B. da Silva, outro Fernão Dias ou Aguirre mitológico encontrou mina d ouro em território sob controle d uma tribo aborígene. Perante a resistência índia em possibilitar a exploração dos desconhecidos d fartas barbas e roupas brilhantes para quem sabiam ouro ser sistema, pretexto muito forte para ficar, veio ali mesmo, rápido, o ardil: com aguardente, Bartolomeu lança fogo à água d um recipiente para grande espanto dos nativos, q mistérios desses tinham só na imaginação dos deuses. Aos olhos dos portugueses era a luz do seu conhecimento cristão sobre o primitivismo e obscurantismo pagão. «Anhanguera! Anhanguera!» gritavam os índios ante a visão da carantonha diabólica d B. B.  atrás do fogo impossível.  E o sage  português ficou para o vulgo como Anhanguera (coisa superior, do outro mundo -- em tupi-guarani) e permanece na galeria dos audazes q alargaram as fronteiras... do Brasil. James Anhanguera (não) sou, pois.

Corações Futuristas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978

Nota - Anhanguera não é, sequer brasileiro, mas português, talvez de gema -- ou da gema, para manter o tom. Prefácio extraordinário a um livro comprado e lido por mim em '82, 18 anos tenros. Notas sobre música popular brasileira é o subtítulo. Pela amostra pode-se intuir toda sua a bela pinta, a bem merecer reedição & possível actualização. 


sábado, 16 de fevereiro de 2019

#8. "Num árido e abrupto vale" (Rui Chafes, 1966)

Num árido e abrupto vale, habitado apenas pelo rumor longínquo do rio lutando para conseguir passar entre as estreitas fragas, uma voz disse-me que só estamos aqui de passagem, que a nossa estadia na terra é temporária. Sentado nas pedras, aprendi que essa voz, atravessando aquela solidão arcaisca e silenciosa, era o próprio rio, imparável.

«O perfume das buganvílias», Entre o Céu e a Terra (2012) 

Nota - «O perfume das buganvílias» compõem com «A história da minha vida» o díptico deste livro, um dos mais belos que se publicaram na nossa língua.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

#7. "De Atenas a caminho do cabo Sunion" (Luís Veiga Leitão, 1912-1987)

De Atenas a caminho do cabo Sunion.
Uma luz que se toca (à semelhança da claridade algarvia), luz que é pólen nos dedos -- como flor que se abre à flor das mãos. E uma estrada ao longo da costa mais recortada que gráfico, se possível, duma angústia sem remédio, duma tortura que não acaba.
E, no entanto, bela. A beleza que o mar, no seu artesanato de formas, lhe deu e dá. A forma e a cor. Uma cor rente apenas. Água polida de espelho, verde vidro ali, violeta mais além, até se perder, ao fundo, no azul carregado de todas as águas. Num volte-face, porém, o solo é quase pedra, calvo, branco, ósseo, como que ruminando uma secura eterna. Daí, outrora, um fio, um cabelo de água corrente, era uma divindade. Árvores -- nem vivalma ou muito ralas. Vegetação que do pedregulho se nutre. Cactos e outras vidas de baixa condição.
Focinhos plantados no ar, dois burros imóveis. De carne ou de pedra? burros e cabras povoam a solidão áspera das montanhas gregas -- oitenta por cento do seu território. E mulheres de escuro, acocoradas na berma da estrada, vendem figos roxos; tal e qual as suas irmãs, também de escuro e a vender fruta do tempo ao estrangeiro que, pela estrada da Guarda, vem e volta por Vilar Formoso.


Livro de Andar e Ver, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978.

Nota - o olhar sinestésico em palavras sempre bem medidas dum poeta, num fragmentário livrinho de viagens, entre o Douro e o Mediterrâneo.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

#6. S. JOÃO D'ARGA (Ruben A., 1920-1975)

S. João d'Arga -- 28 de Agosto.

anos tinha lá uma promessa. Mais cedo, mais tarde, obrigava-me a meter pela serra acima de avanço até àqueles penhascos, irmãos do outro mundo onde pousou no encanto a capela de S. João. A festa em honra do santo de Arga é uma coisa única no país -- e é assim por muitas e variadas razões.
Este ano aventurei-me à minha promessa. Preparei o breviário. Um dia passado na montanha, noite alerta, regresso pela madrugada.
Vai-se de automóvel até S. Lourenço da Montaria, depois à pata. Daí à capela, na arga de S. João, são bem umas três horas de subidas em caminho -- é uma aventura paleolítica onde todos os minhotos vão levar o sal das promessas, ou o amor dos corações. Estão na Idade Média. Todos os anos o 28 de Agosto é corrido a carpir e a borgar naquelas alturas. Há missa procissão joelhão foguetório festeiros mordomos cidra barracas de comes comunhão vinho a rodos sermão em grande estilo. É uma romaria servida em pele e osso, sem ingredientes de V. Ex.ª ou fidalguias de Dom. Do Alto Minho vai tudo -- saem de casa à noitinha para lá estarem de madrugada. Para muitos são nove horas a pé por mau caminho, se pensarmos que a romaria é bem popular na margem esquerda do Lima -- em Mazarefes, Deocriste, Subportela, Vila Franca, Barroselas e nos contrafortes da serra de Arga, na parte ao norte que vai de Caminha a Perdes de Coura. Pedra a seguir a pedra.
À saída de S. Lourenço é uma subida enviesada entre pinheiros cabeça marrada aos pés, romeiros vestidos de animais, patas são quatro, sobe-se de gatas, voltar atrás é perder o equilíbrio. A cada aberta da Natureza chapa-se um clarão entre dois cocurutos de pinheiro; na sombra, uma mulher encostada ao pipote oferece cidra. Os sequiosos bebem. A cidra fervida, fresca, amacia as goelas emperradas. Sobe-se mais, ainda completamente embrulhado em pinheiros, raro se descortina um palmo à rota de estibordo ou bombordo, é tudo caruma, mato e uma fileira de formigas humana: para cima e para baixo, ritmo silencioso de cruzar padre-nosso de olhos magros, rezando mais ave-marias. O extraordinário é que está sempre gente a subir e a descer qualquer que seja a hora, desde o dia 28 pela madrugada do dia 29 já noite fora. Sobe-se sempre, parece uma humanidade transportada em  bandos de funicular nacional. O momento está a chegar, fora dessas montanhas de pinheiro espesso começa o planalto de pedras, pedras desde o princípio do mundo, pedras poemas, sabendo que são pedras, pedras sim. -- A luz está cinzenta, se estivesse céu limpo era um esfolar de corpos correndo riachos de suor. Chega-se ao fim do planalto e vê-se a Ribeira Lima, o alto da cidade de Viana, descortina-se Âncora com o pinhal da Gelfa de sentinela alerta. É um espectáculo cinzento ao pé, quase verde nos longes. Começa agora nova subida por melhor caminho, a cabeça vai baixa, o pensamento desloca-se para S. João de Arga -- as formigas sobem e descem em loucura penitente --, o nosso rancho aumenta-se de uma Tia  de S. Salvador da Torre e de três pequenas do Orbacém acompanhadas do maior patusco das redondezas. Sobe-se, aqui uma fonte. De água ficamos satisfeitos como diz a boa da Tia, que traz promessa anual ao santo -- e descalça é que é -- mostrar ao Santo que se tem um respeito descalçado, nada de familiaridades. O Santo é bom para os aleijões, pernas, cabeças, costelas partidas de bichos e de homens -- é Santo grande de efeitos milagrosos osteológicos. Melhor que todos os endireitas da região e mais sábio de que o da Esperança. Cá vamos subindo, sempre subindo, subindo de cabeça baixa olhando para esta pré-história tal qual. Chegamos finalmente ao alto depois de lutas e contracurvas perigosas sem resguardos. Todo o trânsito se respeita, é um trânsito religioso, penitente, de boa promessa. Cheiro o ar, abro mais as narinas viradas ao vento predominante, está leve e sem mais nada, é um ar cheio de ar onde o puro se encontra com o mais puro, vejo transparências de beliscaduras a respirarem-se melhor. O ar está o que é, e a montanha agasalha-se de mantos diáfanos de ar. Tudo é pureza transparente, pedras de musgo, pedras limpas, pedras cor de sardanisca.
Passam formigas de cestos brancos à cabeça -- merendas de frango e cabrito. Sobe-se mais, cá vai o nosso rancho acariciado pelo transporte colectivo do 29. É o 29 quem leva parte da carga. É um génio o 29. Coveiro enterrador da Junta de Freguesia de Carreço com falta de mortos lança mão dos vivos. Faz tudo, é um destes seres privilegiados como só existem em Portugal. Tem duas vacas, quatro borregas um cão e três gatos para comerem os ratos que se alimentam no curral. Trabalha como mouro desde a noite antes do dia até à noite depois do dia. Faz tudo, deita a mão a tudo, atende às crias, cuida das vacas paridas, oferece assistência. Quando tira o sargaço do mar, ninguém lhe leva a palma. No entanto, dizem os entendidos, a enterrar é que ele é mestre, faz com uma arte e rapidez que a freguesia antes de orar os responsos já está com a alma encomendada para o próximo. Venha outro morto se quer aproveitar, ele está com as mãos na massa. É das melhores almas que se habitam no Norte de Portugal. Não conheço ninguém que trabalha a enxada, o redenho e a pá dos mortos com tanta perícia, dureza e seriedade. Pedra acarinhando pedra.

Puxa mais para cima! Já levamos duas horas bem andadas de subida íngreme. Dá-me a impressão de que tenho o sangue todo nos pés. -- À volta de nós a serra de rochas, pedras, pedras a dormitar, não chegam a senti a comichão que lhe fazem estas formigas escarafunchosas. Passam mais ranchos -- estes minhotos são como gatos de sete foles. Trabalham sempre, quase não dormem no Verão e borgueiam quando os santos fazem anos. Vão a dançar e a cantar como quem chupa caramelo. Eu, de língua de fora, pareço um perdigueiro depois de ter deixado as perdizes voar para outra fraga, lá nos fundos. Ainda se sobe mais, este caminho não é para funcionários públicos nem para comerciantes estabelecidos em casas de bancos ou de latoaria, menos para ministros -- é um caminho de poetas, caminhos de pedras. Como esta gente é poeta! -- Há uma alegria própria no cantar, aberta, convidativa ao amor, granito polido pelos versos. Continua tudo cinzento, excepto as formigas e uns verdes humidados por nova fonte. Pedregulhos ancestrais escondem o resto das formigas e outros mistérios mais íntimos de promessa. A Tia conta a tragédia a toda a gente, transporta tragédia de arromba -- e às carradas. Tinha três filhos e já não tem nenhum -- fiquei com o gato, e vendo sardinha, pronto. A vida resumira-se para ela. Acabou. Cá vai connosco. Há uma mulher que passa e lhe pergunta se eu sou filho dela -- tem a sua cara, isso é que é -- e ela de lágrimas nos olhos responde: -- Os meus já lá estão -- eu não conheço este filho. «-- Olhe que ele tem as suas sobrancelhas! E a penca é por uma peninha».
«Tatá. Adeus cá vamos, o santo está à nossa espera e eu assim não me arrumo». Outro planalto, outra subida mais estreita, a serra, mais aberto o céu e a língua mais saída, mais baixa. Ali não se depara com dez reis de coisa: só o isolamento. Andamos, caminhamos sempre em frente de batida rápida no córrego semidiabo, semideus. Tudo no mesmo ritmo, tudo a palmear. Chegámos ao alto, alto que fica encostado ao céu -- céu e as narinas abriram-se entusiasmadas pelo bufar. Tudo virgem. Agora, daqui ao S. João, é uma boa meia hora a descer e lá daquele fundo já se vê a capela. Assim foi, passados cinco ou dez minutos, pela garganta do desfiladeiro, à direita, a meia altura, João de Arga estava em festa. As primeiras árvores da montanha -- oliveiras, carvalhos de uns quinhentos anos e uma grande muralha que faz pensar que a capela deve estar entremuros. À nossa volta mais formigas, no ar o fumo dos petardos a anunciarem a saída da procissão. Pedras só pedras.
A genuína promessa é descer de joelhos, desde esta primeira rocha de onde se vê a capela, até lá baixo ao altar onde está S. João. São oito a dez horas de joelhos em sangue. Passamos por várias promessas em funda penitência, de pernas e joelhos massacrados. É de meter medo o poder de sacrifício da fé. Se houvesse caminho aberto, ainda era fácil, mas assim, aos pequenos saltos de joelhos, é já do outro mundo. Avançamos de facilidade, a descida sobre S. João é bela com o regato a espelhar e o rio Minho de Santa Tecla e tudo mais ao norte. É supino. Meto a língua para dentro. Começo a dar ao rabo. Contente. A minha promessa estava cumprida, era só entrar na capela, agradecer a S. João.
Pusemos arraial na encosta, pedra ao pé de pedra. Lá fomos entre o formigueiro. A capela é mesmo viva pelas coisas de pedra colorida e pela situação escondida do altar-mor. Tem uma estátua do Santo Miguel a cutilar o Senhor Diabo que é uma maravilha. Todos entre Lima e Minho têm respeito ao Senhor Diabo, e os romeiros levam esmola ao Senhor Diabo para ele estar quietinho. Nada de obras do Diabo! O Senhor Diabo merece toda a consideração. Deitei lá umas cinco coroas para não ter nada com as iras e más disposições do Senhor Diabo.
Por cima da entrada da capela-mor há um baixo-relevo policromado representando o baptismo de S. João. De maravilha a igreja está em festa com duas bandas de música, os Atrevidos de Freamunde e a Banda Marcial do Couto da Labrega. À volta, um arame para separar os penitentes dos que já cumpriram as promessas; 379 voltas de joelhos à capela, num murmurar baixo as rezas quentes do rosário, já a contas no último terço. O padre fala, a banda toca, uns dançam, outros bebem, outros comem, outros rezam, outros dormem, outros gritam -- é um quadro estranhíssimo quase nas raias do brueghelesco. Sinto fome, uma fome viva com cheiros de salpicão a entrar nas goelas. Abanco na ravina, inclino-me a baixa o olhar sobre o rio e no espreito de uma luz quase cheia, devoro a carcaça de centeio. Rasgo a dentuça ao longo das cavidades do chouriço da Riba de Âncora, e enterro o gasganete num quartilho de branco que me chama a confessar os pecados. Os da carne são todos iguais, os cá da cachimónia é que variam de temperamento para temperamento. O que é preciso é ser-se grande perante Deus, dizia na velha capela das Amoreiras  um padre chato e resmungão que ao mundo deixou esta bela frase; -- Grande perante Deus! --, neste momento aproximo-me divinamente. Atrombo mais chego à verdade da gula e paro, sinto vaidades, devaneios a pairar ao encontro de outrora. Como se mexem os meus petardos alucinados pela crueldade do sofrimento espiritual. Não há dessas coisas em nossa terra, mais vinho, menos comida, mais pedras, é o que há juntamente com umas rezas bem a propósito para os Santos milagreiros. O que é preciso é ser-se grande perante Deus!
O dia encolhe-se, limpa-se a noite. As estrelas pirilampam-se depois do luar, as fogueiras do arraial significam mistério. Devia ser assim no tempo dos santos medievais -- estamos sentados a admirar a bacanal, na outra ravina da costa, mais aplainada, o espectáculo é de único. Ranchos por toda a parte a cantarem, a dançarem ao som da concertina do conjunto de tocadores. Um alto-falante vomita danças espaçadas, lembra estúpidos de civilização. As bandas tocam mais forte -- bebe-se agora um tinto magnífico e o fogo sobre no alto colorindo uma natureza parda de rocha. O panorama tem majestade. O povo ali não se abana de artimanhas, é um sim de fé e de borga.
Em S. João d'Arga não existem casas -- há a capela, e à volta o quartel, nome pelo qual se chama a uma barraca onde dorme a malta bem empilhada. Mas ninguém dorme -- não se pode dormir, a noite e as fogueiras altas de cada ninho de pedras raro possibilitam sono -- dançam os ranchos, bebem como sequiosos do Nordeste brasileiro, tudo bebe mais vinho e tudo come pela noite fora. Ninguém para -- vejo um embalar puro, sagrado, da gente que espera a primeira missa às cinco da manhã. Depois da comunhão tudo parte à debandada -- formam-se novamente os ranchos e ao nascer do sol o formigueiro movimenta-se de partida. Dá-se lugar a outros que vêm passar o dia 29 junto ao santo. Não durmo, olho para aquele mundo como quem mira uma reserva humana em papel selado. É tosco, primitivo, frascário, mas é puro, é português.


Páginas V, Lisboa, 1967 / Antologia, edição de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Lisboa, 2009.

Nota - um texto muito sensorial e de grande mestria, como é apanágio do autor.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

#5. QUASE UMA GLOSA (Eugénio de Andrade, 1923-2005)

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Os olhos tinha-os azuis, de um azul que nunca distinguiu. Uns olhos que consumiu a sonhar. Sonhava impenitentemente porque, à sua roda, tudo morria à míngua de autenticidade. Isto lhe doía. Isto lhe doía mais do que a pobreza dos pescadores da Canteireira ou dos camponeses da Nespereira, a quem deu por inteiro a sua ternura -- tanta, que raras vezes, na nossa língua, ela terá crepitado assim, alta e sem mácula. Não são os pobres, na sua pobreza, os que mais se negam e se atraiçoam. Quem menos tem é quem mais perto está de se ter a si próprio. Isto sabia, por isso lhes envolvia os trapos com o calor dos seus olhos, ou se consumia a reinventar-lhes a trágica e grotesca morte de cada dia. O sonho é o seu reino: só aí ninguém abdicará da sua alma. Nele se refugia para ouvir um fio de água que não sabe bem donde discorre, de tal modo, em certos instantes, ele e a natureza são um acorde perfeito. Era uma fonte assim que procurava em cada homem, a fonte do ser, onde a transparência da água e o ardor do fogo se reconciliavam. Mas o homem negava-se ao acorde fundamental, a esta voz da origem, a única que o podia religar ao mundo. Salvo nos momentos privilegiados do amor, o homem era o que havia de mais errante na terra, em busca perpétua do seu próprio rosto. Com «a mentira entranhada na carne», a «alegria dos instintos» perdida, os seres, como as coisas, apodreciam -- «só mesuras, só baba, só rancor». O próprio amor era o que havia de mais frágil: um suspiro bastava para matá-lo. No deserto que criara, o homem era só abandono. Como escapar à miséria da sua condição? Deus teria um dia misericórdia do homem, como acreditava Pascal? Deus estava morto e o homem não nascera ainda. Ou teria já nascido? Cada deus que morre não é a anunciação do seu nascimento? Havia pois possibilidade do homem se erguer, de trapo em trapo, à luz do seu rosto, e usar o coração sem usura? Pois pode o homem nascer fora do nosso coração? Cada pergunta sua tropeçava no homem. E haveria outro esplendor por que perguntar, outra maravilha com que sonhar? Não, não havia. Fora do homem não há absolutamente nada. É por ele que grita, é por ele que sangra até aos ossos. Para que se desoculte, tome posse de si, e viva, «não como ser individual com nome no cadastro, e uma profissão -- mas como força e destino». No negrume procura ouvir os seus passos, mas na noite apenas ouve o caruncho a roer a madeira do seu coração. Que absurdo mundo este, onde o homem é só ausência do homem. Absurdo. Espesso. Opaco. Palavras! A inutilidade das palavras! De que lhe serviam essas, aí, de raiz amarga, que lhe vinham à boca a todas as horas? Palavras que perseguia na noite, ou o perseguiam, quem sabe? Que sonho, com elas, teciam ainda as suas mãos, essas mãos que tanto acariciaram a terra, e onde todo o espanto se refugiou? Era um poeta -- às palavras estava condenado (quero eu dizer: à inquietação que toda a palavra é), mas só elas o poderiam salvar. Só nas palavras as trevas do seu ser se abriam para a luz. E não era a luz toda a ternura do mundo? Por isso se lhes abandonava, com uma confiança que nunca dera à vida. Quando, oh quando poderia regressar ao azul limpo dos seus olhos, sem tropeçar na angústia mais viva? Que voz o poderia reconduzir aos dias em que a consciência de existir não era ainda a consciência de ser uma só e paciente espera da morte? Contra a morte só tinha as palavras -- as que lhe subiam à boca. Na «noite velha» cantava. Cantava para sua mãe que, debaixo da terra, talvez o ouvisse ainda; ai cantava para o Nel que, passados tantos anos, ainda via subir às figueiras, aos figos lampos para lhe dar; cantava para aquela velhinha que, lenta, lentamente, subia a ladeira apoiada numa bengala. Cantava para a transparência do mundo...
De Raul Brandão, pois foi dele que tentámos falar se poderia dizer o que ele maravilhosamente disse de sua mãe: gastou-se a sonhar. Alguns dos seus sonhos são ainda os nossos -- eis porque está tão vivo no nosso coração.


VV. AA., Raul Brandão -- Homenagem no Seu Centenário, Guimarães, Edição do Ciclo de Arte e Recreio, 1967

Nota - Um notabilíssimo texto, impregnado do pathos  da narrativa brandoniana.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

#4. PEDRAS BRITADAS (Afonso Duarte, 1884-1958)


1

O conhecimento das Instituições elementares da Retórica, -- espécie de natureza-morta, ou Mecânica das palavras em ordem à Harmonia, -- não faz mal a ninguém; mas a condição essencial de todo o artista é escrever com as palavras mais próximas da vida.

2

Não me convidem nunca para discursar em público: Eu não sou dos que gastam meia hora de adjectivos a empurrar um substantivo comum.

3

Uma varina conversa comigo:
-- Achei esta bolsa no chão, e apanhei-a, julgando que tinha alguma coisa -- nem chapa de leque!
-- Calei-me e -- arrecadei o oiro...

4

Coaxam rãs nos pântanos sombrios e dá o luar nos lagos?
Belo cântico espasmódico para um poeta saudosista...
O  que se pede é que nos pântanos se plantem eucaliptos -- esses peraltas da vegetação!
Os corpos pedem higiene e as almas velocidade para o bem de todos.




presença n.º 1, Coimbra, 10 de Março de 1927 



#

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

#3. A "ESPANHA" DE ANTERO DE FIGUEIREDO (Rebelo de Bettencourt, 1894-1969)

Esta «Espanha» de Antero de Figueiredo, não é a Espanha dos espanhóis nem a Espanha que nós vemos. É a Espanha que Antero de Figueiredo vê através da sua emoção de artista e da sua saudade portuguesa. Não é um livro de viagens comuns -- é um livro de viagens dum coração que vibra «ante a beleza novidade exposta aos olhos viandantes» para aprender a sentir melhor, com mais fina ternura, a beleza «bendita e louvada da terrinha de Portugal».

          Fui à França e «não» voltei francês;
          Fui à Espanha e «vim» português.

Depois das suas admiráveis «Jornadas em Portugal» -- Antero de Figueiredo escreve a «Espanha», que não é mais do que a continuação desse livro.
Na verdade a «Espanha» é a segunda parte das «Jornadas em Portugal». É a mesma emoção que aquece as páginas desses dois livros; é a mesma «paisagem interior» que nós vemos diante das duas paisagens -- a portuguesa e a espanhola. O próprio Antero de Figueiredo é quem nos vem confessar a sua sensibilidade nacionalista, primeiro com um terceto da «Corte da Saudade» de António Sardinha:

          Em todo o mundo há terra portuguesa,
          desde que a alma a tenha na lembrança
          e a sirva sempre com fervor igual,

depois com as palavras saídas da sua pena, dizendo-nos que «continua a ser, neste novo livro de «Jornadas» um faccioso português que viaja na sua terra, ainda quando viaja mais na linda terra alheia».
Antero de Figueiredo é um dos mais altos e mais belos prosadores, no melhor e mais nobre sentido. Não escreve mecanicamente, alinhando palavras mortas, que são sempre mais belas aos nossos olhos do que aos nossos sentidos. Para Antero de Figueiredo, escrever é sofrer a comoção de um povo, que é o nosso. Cada palavra portuguesa é um ser vivo, arrancado, a sangrar, do nosso próprio ser, morrendo... Em cada palavra da nossa língua está um pouco de nós -- não o nosso corpo, mas a nossa alma, e se não a nossa alma, a nossa dor... A palavra portuguesa é o nosso corpo imortal, porque é espírito. O corpo em que a nossa alma vive aprisionada e escrava -- morre e apodrece, é barro e torna-se em cinza, e a cinza em nada... O nosso corpo é pó, que a nossa alma agita por instantes, na frágil e curta vida, para ser arrastado mais tarde, na morte, pelo vento -- que talvez seja a alma das coisas...
Mas o corpo da palavra não morre, nem apodrece, nem o arrasta o vento. Nasce para não morrer. Não é argila, nem é carne, embora, como em carne viva, dentro dele se ramifiquem veias, e dentro das suas veias se ramifique e palpite, com o calor duma brasa, sangue vermelho, o nosso sangue, a arder na brasa da nossa dor.
escreve bem português -- não quem for procurar com cuidado e arte, aos nossos dicionários, as palavras mais belas, mas quem for buscar, numa hora alucinada e inspirada de sofrimento e tortura, ao coração da nossa língua, as palavras mais sentidas, aquelas que a nossa comoção inventou e sofreu.
Porque é que quase todos os livros morrem e esquecem, logo que morrem os seus escritores? Porque foram escritos e pensados com as palavras dos «dicionários», e se muitos deles o não foram, foram somente molhados com uma emoção «pessoal». Só ficam os livros em que as palavras não foram rebuscadas «materialmente» nos catálogos, mas aquelas que foram procuradas «espiritualmente» na alma e na emoção do povo.
Cada palavra é um ser vivo e perfeito, com uma alma lá dentro: a nossa. Amemos por isso a língua portuguesa -- espírito gentil da nossa raça, e amêmo-la enternecidamente, como a nós mesmos se como o nosso mais rico e sagrado património, porque cada palavra que desaparece é um pouco de nós mesmos que vai também morrendo.
Dos prosadores que eu mais amo, por neles, em cada palavra sua, sentir Portugal -- no povo, na dor e na paisagem -- são Afonso Lopes Vieira, em que cada palavra é um ritmo, e cada ritmo o eco duma voz; Aquilino Ribeiro, em cujas páginas, ora cruéis e amargas, ora alucinadas, ora líricas, tumultua e delira, escaldante, o sangue sensual, perverso, bravio, mas humano, da gente da Beira; Carlos Malheiro Dias, continuador, mas com outro estilo, da elegância de Eça de Queirós, e Antero de Figueiredo que acaba de completar e apurar todas as suas faculdades de prosador e toda a sua sensibilidade portuguesa.. Escrever português não basta. É preciso que dentro de cada palavra se sinta a nossa alma lusíada. Mesmo na mais pequenina palavra deve sentir-se sempre um bocadinho de Portugal.
Antero de Figueiredo escreve para os nossos ouvidos e para a nossa alma. A sua prosa perturba-nos, enleva-nos, com a música das palavras e com o «interior» dessas palavras. Ler as páginas desta adorável «Espanha», em que perante a beleza enlevadora e alheia, se sente sempre a saudade de Portugal -- é pôr o ouvido na nossa paisagem e ouvir, comovida e estranha, a voz do nosso povo.
Dois trechos de «Espanha» maior alvoroço, inquietação e doçura puseram a minha sensibilidade: -- «A Vala dos Mortos», em Roncesvales, e a procissão do «Viático» que Antero de Figueiredo viu, do terraço dum solar.
«A vala dos mortos» é uma página alucinante. Fialho, que escreveu a «Ruiva» e «Os Ceifeiros», se fosse vivo, invejá-la-ia. Alucina, esmaga-nos, enche-nos de terror e espanto. Perturba e domina. Quando acabamos de ler essas páginas formidáveis -- sentimos a nossa alma amarfanhada, contorcida de pavor misterioso.
a Procissão do «Viático», numa noite calma e enternecida, põe uma nota de ternura a religiosidade no nosso coração. Antero de Figueiredo enche de poesia e perfume essas páginas do mais puro lirismo. Mais do que nunca Antero de Figueiredo é o escritor português, porque o escritor dum povo é sempre o seu intérprete. Pela pena dum escritor deve passar sempre a voz da sua gente. E é a alma da nossa gente, é a «terrinha» louvada e bendita de Portugal -- que nós sentimos vibrar perante a beleza alheia. 

Rebelo de Bettencourt, A Vida das Imagens, Lisboa, Ressurgimento, 1928, pp. 23-27.

Nota - Nacionalismos à parte, trata-se de uma esplêndida crónica de Rebelo de Bettencourt, homem do Portugal Futurista, mais tarde abraçando o nacionalismo mais conservador e católico, tal o de Antero de Figueiredo. A exaltação da palavra é absolutamente extraordinária: «Cada palavra é um ser vivo e perfeito, com uma alma lá dentro: a nossa.»



quinta-feira, 7 de julho de 2016

#2. "Uma máxima não pretende..." (José Bacelar, 1900-1960)

Prefácio - 1 - Uma máxima não pretende defender um ponto de vista ou indicar uma direcção; uma máxima constata, simplesmente. Não é pois um género actual.

José Bacelar, Revisão -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana, Lisboa, Portugália Editora, 1935.

Comentário - José Bacelar, um moralista à antiga e à francesa. Arte de pensar (n)o cerne, ainda hoje menos actual, pois que parecemos caminhar, nos que às Humanidades respeita, para um novo período em que o pensar se atomiza em círculos cada vez mais restritos. Como, na Idade Média, nos mosteiros.

terça-feira, 5 de julho de 2016

#1. NOTAS PARA FAZER UM CONTO... (Maia Alcoforado, 1899-1974)


Ao Carvalhão Duarte

Ao cabo da estrada que de Cantanhede fica apontada ao mar -- uma recta enorme, tamanha como uns dez quilómetros bem puxados, enfadonha e triste, com três montes de casas poisados nas ilhargas e alguns fornos de cal enrodilhando de fumo negro a ramaria dos pinheiros -- velhos, com mais de um século e altos como alarves -- aparece-nos de enfiada na ponta do nariz a Vila de Mira, que, ao contrário de Cantanhede, comarcã e burguesa, afidalgada e petulante, não tem na sua monografia capítulo de monta, nem réstia forte de alambicada pretensão... Terra de gente ordeira que o vinho em dias de arraial ou de mercado não torna ruim, trabalhadora e honesta, com uma percentagem que mal se enxerga em pilhas e madraços, ciosa dos bens que por direito de herança aferroa e arrecada com jeito económico, mas sem modos de usura -- para aqui me cuspiu um solavanco brusco e destrambelhado da carripana que nos transporta do berço à sepultura, num dia aziago, de sol esplêndido e luminoso, brincalhotando no ar a chuva miúda do seu pólen doirado...
O povo mirão que anda à bulha com o mar uma grande parte do ano, porque é pescador que se arroja e atreve com as suas charrafuscas e motins e que desentranha a terra a golpes de enxada e amamenta os filhos nas arrevezadas lições do trabalho -- precisa que, de quando em quando, falem dele nestes lençóis onde se esculpem letras e estampam gravuras, porque anda até os gornes da garganta farto de tanto ostracismo que o tolhe e engarrafa.» Pois se é raro o mapa onde se topa o nome da terra... -- e tem foral, que recebeu das mãos venturosas do Senhor D. Manuel I e é concelho antigo e mais remoto fora se Cantanhede não lhe tivesse, sorrateiro, surripiado a primeira autonomia há mais de trinta anos...
Foi aqui que em 1856, a 26 de Março, se amesendou com a morte o mavioso e rebelde Francisco Joaquim Bingre -- o Francélio Vouguense da Nova Arcádia -- e que, aquando da fúria pombalina, se agacharam parentes dos Távoras -- de quem ainda agora há restos, numa degenerescência vulgar, doentia e inútil...
O solo é fecundo, porque de bem trabalhada no alqueive não há leira que não resplenda, nem brilhe; quintal que não sorria para a gente com o seu pomar e a sua horta; vinhedo que pelo São Tiago não tenha os bagos pintados, limpos, carnudos -- que os pardais depenicam numa orgia arreliadora de amarrotados gorjeios...
De um lado o mar; do outro, a gândara -- a enfaixá-la, a cingi-la, em sombras e em claridade.
O mar estrebuchando a toda a hora de encontro às casas dos pescadores, feitas de madeira velha e de originais feições -- a escoucinhar na areia e às trombadas nas dunas, berrando como um doido, barafustando de espinha dorsal erguida como tirano a quem não arrefece a ira...
A gândara, silenciosa e erma, de pinheiros hirtos como a soldadesca impávida que não se move nem pestaneja e por onde vagueiam sombras de que não se entendem as formas à maneira que o sol desanda na sua elipse -- alinhavada de carreiritos estreitos que em certa quadra do ano as moças que vão à cata das pinhas, à caruma e ao rapão, palmilham de bustos alçados e quadris coleantes, num formigueiro polícromo e alegre...
E, já que falo das moças, deixem-me concluir: -- nenhuma delas possui beleza clássica que entonteça, ou que perturbe, mas não lhes escasseia a graça dum sorriso tentador, e elegância fenícia, delevelmente mutilada e a luz vibrante duns olhos copiada da luz do sol à hora rútila das sestas...
Anda por aqui um doido que, como uma sombra, viscosa como a lama e trágica como o perfil de todas as sombras que o dedo maldito do fatalismo desenha e imprime nas paredes negras de certas vidas, leva as manhãs num vozeirão de tribuno, pletórico de frasalhões aprendidos e decorados no tempo em que ainda tinha juízo, a correr as ruas a a assaltar quem passa, protestando cóleras e inflingindo insultos, àquilo que ele supõe ser o morbus que destrói e deteriora os alicerces milenários da sociedade e do mundo, da civilização e dos costumes...
É alto e forte como as paredes mestras dos antigos castelos.
O seu carão moreno, semeado de rugas profundas, onde baila e vibra a chama azul e ingénua duns olhos que eu vi algures descritos nuns versos de Espronceda, tem a expressão indómita dum batalhador que não se deixa vencer a golpes de cutelo...
Às vezes fico-me a pensar se este doido que anda por aqui, só nas manhãs em que o sol doira os prados e as veigas, namorado da luz, arremedando com a sua cabeleira que lhe cai desmazeladamente sobre os ombros, os Apóstolos e os revolucionários, não devia ser cuidadosamente escutado por tantos que por aí andam a semear teorias e a impingir princípios -- de que nunca se vêm os fins...
Talvez que aprendessem com o doido -- com este doido que num vozeirão de tribuno, apregoa, em frases onde abunda o bom estilo e onde não escasseia a ironia que contunde, fere e faz sangrar, aquilo que para ele e para muitos que passam por doidos, mas que têm juízo às carradas -- é a traça e o gorgulho que dizima e rói as aduelas do mundo e as arcadas sobre que assenta a civilização...

1945

Paisagem do Dia Ausente, Porto, Edições AOV, 1947


Comentário - Um texto, como tantos outros, de exaltação da terra de adopção, com introdução de um característico do lugar, que sempre os há. Mas também há expressões que me fascinam, denotando um trabalhar lúdico das palavras: "para aqui me cuspiu um solavanco brusco e destrambelhado da carripana que nos transporta do berço à sepultura", "brincalhotando no ar a chuva miúda"; "amesend[ar-se] com a morte".