sexta-feira, 26 de março de 2021

#14. (MOSCOVO, 1952 -- OS DESMEMORIADOS) (Jorge Amado, 1912-1001)


Ilya Eremburg e eu chegamos silenciosos de uma conversa com figuras gradas nos altos escalões a propósito de nosso amigo Jan Drda, atendendo pedido que ele me fez em Praga de onde venho para receber o Prêmio Internacional Estaline da Paz: o prêmio me credencia. Estamos em Janeiro de 1952, vinte graus abaixo de zero, vento gélido varre as ruas de Moscovo, emborcamos os cálices de vodca no apartamento da rua Gorki, Ilya me diz: Jorge, somos escritores que jamais poderemos escrever memórias, sabemos de mais. No abalo da conversa que acabamos de ter, balanço a cabeça concordando.

Afirmação categórica não impediu que, alguns anos depois, durante o período de Krushtchev, ao se abrir uma brecha no obscurantismo soviético, ao despontar de uma pequena luz no meio das trevas,o autor de Degelo publicasse sete tomos de memórias, sete, nada menos: no sétimo Zélia e eu figuramos, simpáticos personagens. E isso não é tudo, pois Irina me contou, em 1988, estar pondo em ordem os papéis do pai com o fim de editar vários volumes de memórias inéditas que ele não conseguiu publicar sequer durante a abertura de Krushtchev: Ilya sabia de mais.

Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e conseqüencias, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a se triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga conseqüência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotação, morrem comigo.» 

Navegação de Cabotagem (1992)

Nota: Trata-se do primeiro fragmento destas memórias propositadamente desconjuntadas, que se lêem dum trago. Leio-o também como um aviso à navegação por ocasião da debâcle soviética, para quantos pudesse andar à cata de episódios sórdidos relacionados com o Partido -- a maiúscula e o sentido de compromisso mantêm-se. O mal-estar concentracionário do pesadelo estalinista -- é difícil imaginar algo tão avesso ao tropicalismo solar de Jorge Amado -- está bem vincado, não pelo que diz, mas pelo que transpira; não há nada mais desonroso do que ser considerado como um trânsfuga; e depois Jorge Amado, por generosidade ingénua e voluntarismo, foi um arauto desastrado desse mesmo estalinismo; e ele não o nega. Felizmente a sua obra em geral vale muito mais que isso; mesmo quando errado, esteve sempre do lado certo no que respeita ao seu Brasil. E é esse Brasil miscigenado, violento, alegre, injusto, brutal em tudo o que tem de bom e de mau; são obras-primas do romance como Mar Morto (1936), Gabriela, Cravo e Canela (1958) -- resposta elevadíssima do ponto de vista literário e ideológico a todos quanto, depois de O Mundo da Paz (um desastre propagandístico de louvação a Stalin, 1951) ou Os Subterrâneos da Liberdade (1954), veio clamar que Jorge se tinha aburguesado; se tal sucedeu ou não, é assaz irrelevante para o escritor, que é o que interessa; todavia se houve coisa de que el se não absteve foi o de travar, sempre, o bom combate. Tenda dos Milagres (1969) -- o primeiro que li, e parece que o seu preferido -- aí está para o demonstrar; a propósito do qual um crítico exigente exarou: "Jorge Amado em estado de graça".

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

#13. COMO SE PERDE UMA «REPORTAGEM» (Artur Portela, 1901-1959)


Estava no Funchal havia quinze dias. Levara um encargo fácil. Entrevistar Norton de Matos, que vinha pela primeira vez à metrópole depois de ter exercido o cargo de Alto Comissário de Angola. O antigo ministro da União Sagrada era, nesse tempo, uma figura discutidíssima. A política dos partidos dilacerava a sua obra colonial. Vinha defender-se a Lisboa e, como depois se verificou, renunciar ao seu cargo. Estes factos tornavam interessante um entrevista em primeira mão. Da sua oportunidade julgou o Diário de Lisboa pagando-me uma 1.ª classe, na Insulana, até ao Funchal.

No dia em que devia fundear no porto o navio onde viajava Norton de Matos, encontrei Rocha Júnior. Contive a minha surpresa. Era um competidor. Bebemos os cálices de Madeira do encontro, Falou-se de Lisboa, sem saudade, e, do assunto que nos reunia, com cautela. Éramos dois concorrentes, batendo o mesmo terreno. Íamos travar um match de reportagem, nada pessoal, mas jornalístico. O primeiro que entrevistasse Norton de matos podia cantar vitória. Pela minha parte tinha que a obter pondo em jogo todos os recursos, todos os processos. Se o diário de Lisboa, na mesma tarde em que Norton de Matos passava na Madeira, não publicasse o telegrama súmula da entrevista, no outro dia, o Diário de Notícias, por intermédio de Rocha Júnior, publicá-lo-ia como caixa, abalando, assim - julgava eu nesse sarampo ingénuo do jornalismo -- os meus créditos de repórter.

Era necessário ganhar tempo, iludir o terrível inimigo de ocasião.

Preparei as coisas de tal modo que o gasolina de saúde onde ia, e que Rocha Júnior quis aproveitar, não partiu do molhe, como de costume, mas de um local afastado a Pontinha, e sem o emblema sanitário.

O gasolina voava nas águas do porto. Como sempre, foi o primeiro barco a atracar. O meu contentamento não teve limites. Vencera a regata. Era metade da vitória. Subi a escada do portaló do África, furei por entre os curiosos de ver terra, até encontrar Norton de Matos que, em cima, no deck superior, falava com o comandante do navio. Fiz a entrevista, rápida, concisa, e, valha a verdade que se diga, bem pouco sensacional. Cifras astronómicas, oleaginosas escorregadias, questões de trabalho indígena, em perpétuo descanso colonizador... À despedida, no aperto de mão que troquei com Norton de Matos, o meu olhar, por acaso, resvalou na amurada do navio. Quem havia de ver? Rocha Júnior, fleumático, superior, que, para marcar bem o seu desagrado e, talvez, o seu ressentimento, não quisera interromper com a sua a minha entrevista. Quando passei por ele, não trocámos uma única palavra. Ràpidamente, contando minutos, segundo, noutro gasolina que cortava ansioso as águas, abalroando com as embarcações que formigavam à roda do navio, alcancei terra. Subi a pulso a escada de ferro do molhe - vertical, perigosa, escorregadia de trinta e tantos degraus. Célere, redigi o telegrama. Pensei ainda utilizar a T.S.F. Mas para quê? Em poucas horas, pelo telégrafo, a entrevista chegaria ao seu destino com tempo suficiente para ser publicada no Diário de Lisboa.

Esta certeza embriagou-me.

-- Que «caixa»! Que grande «caixa»! -- dizia eu para o Miguel Martins, meu secretário de amizade, sorveteando um gelado, prazer que ele consentia depois de ter verificado o estado de degelo das finanças da reportagem.

Pobre caixa! Era de papelão! Calculara tudo, menos a diferença da hora meridiana. O meu telegrama chegou a Lisboa já depois do jornal fechado. O Diário de Notícias, no outro dia, revelava a almejada entrevista com Norton de Matos, tornando 12 horas mais velha a que o Diário de Lisboa publicava nessa mesma tarde.

E Rocha Júnior?... Não guardou ressentimento. Elegantemente soube escondê-lo e atenuar, sem ironia, a sua fulminante vitória.

in Uma Hora de Jornalismo -- Aspectos, Anedotas e Inconfidências da Vida Profissional,

Caixa de Previdência do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa,

Lisboa, 1928

Nota - Um episódio anedótico dos tempos heróicos do jornalismo, nem rádio havia, um retrato do espírito competitivo de então, em que era preciso dar a notícia primeiro. As coisas não mudaram, diria. Tanto Portela como Rocha Júnior eram literatos, além de jornalistas. Como ficcionistas, prefiro o homem do Diário de Notícias ao do Diário de Lisboa, o melhor jornal que já se fez entre nós.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

#12. JOÃO DE DEUS (Fialho de Almeida, 1857-1911)


 Meu amigo:

Pergunta-me o que penso de João de Deus e da sua festa. Vou dizer-lho em meia dúzia de palavras. Em João de Deus há três grandezas: a intelectual, sintetizada na Cartilha e em certos clarões da prodigiosa lucidez que aviva o seu cavaco; a afectiva, que está completa em quinze ou vinte composições da obra poética, e que são o que a poesia lírica conta de mais puro e belo na literatura de todo o mundo; e finalmente a moral, de que é penhor uma vida singularmente simples, e digna, pela perfeita coesão das virtudes, de servir de base a uma religião.

A ideia dum preito cívico a esta figura trìplicemente olímpica, e provàvelmente rara no mundo europeu contemporâneo, onde o método substitui o talento, o cabotinismo, a emoção, e onde a pureza moral (na maior parte dos casos) é apenas prospecto de egoísmos ferocíssimos, resume em si, sem dúvida, um grande uníssono de protesto contra a sórdida estupidez geral, e parece dum povo cioso de inaugurar na sua história, idades de oiro, e de reaver para si grandes fins de pensamento.

Partiu de rapazes, como era de ordem, e agregaram-se-lhe todas as unidades obrantes da nação. Quando isto vi, julguei chegado o dia inverosímil da justiça, e vim para a rua perscrutar no sacre do poeta a páscoa de espíritos tão cara aos meus sonhos de falansteriano enfermo de esperança. De todas as escolas do país viera mocidade, e nos ares troantes de vivório esvoaçavam capas e batinas sobraçando guitarras de faias e presuntos suprimidos no restaurante do Entroncamento. escutei as canções: eram em vez de apoteoses ao poeta, roufenhos fados como as vielas conhecem, sentimentalizando o crime e o rameirismo, dizendo injúrias aos passantes, confundindo democracia com anarquia; e em evangelho, como hausto de independência juvenil, um esbandalhamento parvo e de mau gosto. De sorte que os laços no ombro, em vez de especialidades científicas pareciam antes assinar ganadarias; mas podia ser que assembleiada no cenáculo, toda aquela dispersão de senso usual viesse a furo, despejando as almas do apostema trocista -- tão fora de propósito! -- e resgatando a deplorável demência por algum repto literário onde a mocidade provasse ter vindo à festa imbuída da realeza sem par do egrégio festejado. Ah, meu amigo! que vai você dizer se eu lhe contar que todo esse triplo extracto de campeões futuros da pátria portuguesa, é bem melhor à viola que ao discurso, lançando capas à Palmira Bastos, do que explicando a obra do João; alguns nem lhe sabiam o nome, diziam João dos Dedos; e quando por entre os discursos parolosos da solércia idiota dos loquazes, advieram poetas a enramar-lhe a fronte de lauréis, não imagina você que poesias, e como à desvergonha de ignorar o mestre, se jungia o escárnio de lhe cuspir o génio em versos de cordel! 

Não tenho tempo para circunstancialmente esmiuçar tudo o que vi, mas sempre lhe direi que nas festas do João só me pareceu de boa-fé o festejado.

O resto, amigo, é parasitismo desabusado e eterno dos mexilhões no casco dos navios: uns, doidivanas, caçando no aniversário pretextos de bródio e vadiagem ruidosa -- caso dos escolares; outros, cabotinos, à coca de especular coa glória alheia, e refiro-me aos ministros, ao rei, e aos literatos, que nesta comédia desenvolveram uma sofrível falta de pudor; e finalmente -- esse fundo de população sem pátria moral, cobardia, ignorante e esparvoída, que grita quando ouve gritar, diz mal quando ouve dizer, e se chama o público, e é por toda a parte lama, lixo e escória desprezível.

-- Que deu afinal a festa do João? dirá você. Berros, falta de loiça nas casas de pasto, e a aptidão reconhecida da mocidade escolar para os serviços do tiro, o que aproveita talvez á companhia dos americanos. Consequências literárias: a influência das Flores do Campo na poesia nacional seguirá nula; à uma o público não o conhece, a sensibilidade lírica embotou-se e fez lugar aos grosseiros apetites; e por outro lado falta talento entre os poetas, deram em imitadores e nem sequer tiveram a probidade. Consequências pedagógicas: as poucas pessoas que ele ensinou a ler vão-no esquecendo, pois, com a literatura da terra, não saber combinar o alfabeto é estar preservado dum contágio. Consequências morais, inda piores e mais contraproducentes; com a sua isenção das grandezas, o desprezo do dinheiro, e a nivelação de todos perante a confiança e bondade do seu trato, João de deus é um ser quase prejudicial no meio contemporâneo, e vale-lhe a reclusão: aliás já um decreto o teria suprimido por adversário das instituições.


Nota - Do livro póstumo Figuras de Destaque (1924), um extirpar de escrófulas com incisão de bisturi sem anestésico, uma violência inaudita, que nem em Camilo ou Raul Proença, um desencanto feroz.