quinta-feira, 14 de março de 2019

#10. O RENASCIMENTO DA FICÇÃO EM PROSA COM O ROMANTISMO (Pe. Manuel Antunes, 1918-1985)


Estava na dialéctica da história que a prosa de ficção renascesse com o Romantismo. Com efeito, em contraposição classicizante dos séculos XVI-XVIII, a literatura medieval foi extraordinariamente fecunda no género ficção, quer em verso quer em prosa. Ora, pretendendo o Romantismo ressuscitar a Idade Média -- como a Renascença pretendera ressuscitar a antiguidade -- era natural que nºao deixasse no esquecimento uma forma que, por tantos títulos, estava no centro mesmo das suas preocupações como das mais aptas para expressar a nova maneira de sentir.
O mundo heleno-romano não ignorara, de certo, a ficção em prosa. Porém a novela só tarde, muito tarde, surgiu no horizonte da sua cultura. E surgiu não em grandes obras mas em obras menores de secundaríssima importância, à excepção de uma ou duas que se salvam do quase universal naufrágio: Dáfnis e Cloé, a novela pastoril de Longo, que tanta influência -- directa ou indirecta -- havia de ter na constituição do género entre os neo-clássicos das literaturas modernas, e o Satyricon, atribuído a Petrónio, primeiro romance de costumes em que a sátira se aliava ao realismo. O povo grego -- tão poderosamente mitificador -- preferia fixar as suas criações míticas na poesia -- a epopeia e a tragédia, os géneros de coturno, por excelência -- e deixar a prosa para a utilidade: a história, a eloquência e o ensaio doutrinal. E os romanos seguiram-lhe as pisadas. Muito menos criadores que os gregos, limitaram-se quase só a reproduzir e, no melhor dos casos, a desenvolver os géneros fixados por estes. Com excepção de um, a sátira: «Satura tota nostra est», , diz ufanamente Quintiliano. Nestas condições, não é de estranhar que, tanto na Hélade como em Rome, os preceptistas sejam totalmente omissos acerca da literatura de ficção.
Com a Idade Média quase desapareceu ou, ao menos, passa para segundo plano, a mitologia clássica. Em lugar desta instala-se a mitologia nórdica, mais vaga, mais indefinida, mais brumosa e, por isso mesmo, aparentemente mais conciliável com o Cristianismo, a religião vencedora dos deuses antigos. Mais inocente também, menos gasta e em perfeito acordo com a nova geografia da cultura. Por outro lado o agiografismo maravilhoso -- os medievais tinham uma predilecção pelos «santos românticos», multiplicando as vidas de Maria Madalena, de Tais, de Maria Egipciana (prostitutas e santas) e as histórias de anacoretas do ermo --, a influência dos contistas árabes, a cavalaria como forma superior do heroísmo e da aventura, e a nova concepção do amor «cortês», ajudaram a criar o clima favorável è eclosão, quase simultânea de uma vasta literatura novelesca tanto em verso como em prosa. Porquê também em prosa? Não é agora o momento de o discutir. Contentemo-nos com assinalar o facto.
Com o Renascimento opera-se um regresso ao mundo antigo e, de novo, a prosa de ficção regressa também ao segundo plano. Sem dúvida, ao longo do século XVI, ela consegue ainda subsistir, vivaz. Mas isso vem-lhe, em parte, da força adquirida na encarnação do temperamento peninsular e, em parte, do novo sangue que lhe é transfundido pela novela pastoril, esta de remota origem helenística. Depois, durante os séculos XVII e XVIII, os géneros clássicos impõem o seu prestígio, e a literatura, progressivamente, academiza-se. Os tempos estavam maduros para uma revolução. E esta veio, embora, como quase sempre sucede connosco, inspirada de fora, pedida contudo, talvez mais que nenhuma outra, pelas nossas próprias necessidades internas.
Por sobre os três séculos neoclássicos o Romantismo vai buscar à Idade Média os seus temas, os seus géneros, a sua mitologia, a sua «inspiração». Não só isso. Pelo mesmo movimento, o Romantismo quer regressar ao povo, aos costumes, às lendas e às tradições do povo; quer regressar á Terra, àquilo a que hoje se chamaria, mais cientificamente, o «inconsciente colectivo». Retorno ao povo e à Terra, retorno ao Homem. À interioridade e ao sonho, como às forças irracionais, primitivas e criadoras do Homem. Tudo isto implicava uma nova sensibilidade metafísica e uma nova gnoseologia estética. De facto, ao passo que o Classicismo sentia a existência como ser, o Romantismo sente-a como devir; ao passo que o Classicismo estabelecia o primado da razão ordenadora e imitadora, o Romantismo encontra na imaginação e no sentimento as faculdades-mestras do escritor.
Todas as direcções do movimento romântico levam, pois, em linha recta, a uma renascença da ficção, nomeadamente da ficção em prosa. Porquê da ficção em prosa?
Porque havia o exemplo ilustre medieval e quinhentista; porque a prosa, tornada maleável e rica ao longo dos séculos clássicos, estava apta para, vitalizada, se converter em óptimo veículo da nova sensibilidade; porque um século burguês dificilmente aceitaria assim generalizado o coturno da epopeia -- e uma das flechas do Romantismo aponta ao contemporâneo, ao presente.
A prosa novelesca romântica desenvolver-se-á, em consequência, numa dupla linha: histórica e sentimental. Histórica e sentimental logo na primeira geração com Garrett e Herculano (Garrett, clássico por educação e romântico por temperamento, realiza-se melhor na linha sentimental; Herculano, romântico por educação e clássico por temperamento, encontra-se mais na linha histórica); histórica e sentimental ainda na segunda geração, como Rebelo da Silva, Camilo Castelo Branco e, em parte, Júlio Dinis.
Determinar, mais em concreto, o sentido e o valor desse renascimento da prosa em ficção com o Romantismo é assunto demasiado vasto para os limites dum simples artigo.


Nota - Publicado em Estrada Larga, suplemento literário de O Comércio do Porto (1956), coligido por Maria Ivone de Ornellas de Andrade  in Legómena -- Textos de Teoria e Crítica Literária, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. Artigo de jornal que é uma obra mestra de concisão -- em que tudo o que é importante é referido --,  e profundidade, pois cada período é passível de suscitar um ensaio.