terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

#13. COMO SE PERDE UMA «REPORTAGEM» (Artur Portela, 1901-1959)


Estava no Funchal havia quinze dias. Levara um encargo fácil. Entrevistar Norton de Matos, que vinha pela primeira vez à metrópole depois de ter exercido o cargo de Alto Comissário de Angola. O antigo ministro da União Sagrada era, nesse tempo, uma figura discutidíssima. A política dos partidos dilacerava a sua obra colonial. Vinha defender-se a Lisboa e, como depois se verificou, renunciar ao seu cargo. Estes factos tornavam interessante um entrevista em primeira mão. Da sua oportunidade julgou o Diário de Lisboa pagando-me uma 1.ª classe, na Insulana, até ao Funchal.

No dia em que devia fundear no porto o navio onde viajava Norton de Matos, encontrei Rocha Júnior. Contive a minha surpresa. Era um competidor. Bebemos os cálices de Madeira do encontro, Falou-se de Lisboa, sem saudade, e, do assunto que nos reunia, com cautela. Éramos dois concorrentes, batendo o mesmo terreno. Íamos travar um match de reportagem, nada pessoal, mas jornalístico. O primeiro que entrevistasse Norton de matos podia cantar vitória. Pela minha parte tinha que a obter pondo em jogo todos os recursos, todos os processos. Se o diário de Lisboa, na mesma tarde em que Norton de Matos passava na Madeira, não publicasse o telegrama súmula da entrevista, no outro dia, o Diário de Notícias, por intermédio de Rocha Júnior, publicá-lo-ia como caixa, abalando, assim - julgava eu nesse sarampo ingénuo do jornalismo -- os meus créditos de repórter.

Era necessário ganhar tempo, iludir o terrível inimigo de ocasião.

Preparei as coisas de tal modo que o gasolina de saúde onde ia, e que Rocha Júnior quis aproveitar, não partiu do molhe, como de costume, mas de um local afastado a Pontinha, e sem o emblema sanitário.

O gasolina voava nas águas do porto. Como sempre, foi o primeiro barco a atracar. O meu contentamento não teve limites. Vencera a regata. Era metade da vitória. Subi a escada do portaló do África, furei por entre os curiosos de ver terra, até encontrar Norton de Matos que, em cima, no deck superior, falava com o comandante do navio. Fiz a entrevista, rápida, concisa, e, valha a verdade que se diga, bem pouco sensacional. Cifras astronómicas, oleaginosas escorregadias, questões de trabalho indígena, em perpétuo descanso colonizador... À despedida, no aperto de mão que troquei com Norton de Matos, o meu olhar, por acaso, resvalou na amurada do navio. Quem havia de ver? Rocha Júnior, fleumático, superior, que, para marcar bem o seu desagrado e, talvez, o seu ressentimento, não quisera interromper com a sua a minha entrevista. Quando passei por ele, não trocámos uma única palavra. Ràpidamente, contando minutos, segundo, noutro gasolina que cortava ansioso as águas, abalroando com as embarcações que formigavam à roda do navio, alcancei terra. Subi a pulso a escada de ferro do molhe - vertical, perigosa, escorregadia de trinta e tantos degraus. Célere, redigi o telegrama. Pensei ainda utilizar a T.S.F. Mas para quê? Em poucas horas, pelo telégrafo, a entrevista chegaria ao seu destino com tempo suficiente para ser publicada no Diário de Lisboa.

Esta certeza embriagou-me.

-- Que «caixa»! Que grande «caixa»! -- dizia eu para o Miguel Martins, meu secretário de amizade, sorveteando um gelado, prazer que ele consentia depois de ter verificado o estado de degelo das finanças da reportagem.

Pobre caixa! Era de papelão! Calculara tudo, menos a diferença da hora meridiana. O meu telegrama chegou a Lisboa já depois do jornal fechado. O Diário de Notícias, no outro dia, revelava a almejada entrevista com Norton de Matos, tornando 12 horas mais velha a que o Diário de Lisboa publicava nessa mesma tarde.

E Rocha Júnior?... Não guardou ressentimento. Elegantemente soube escondê-lo e atenuar, sem ironia, a sua fulminante vitória.

in Uma Hora de Jornalismo -- Aspectos, Anedotas e Inconfidências da Vida Profissional,

Caixa de Previdência do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa,

Lisboa, 1928

Nota - Um episódio anedótico dos tempos heróicos do jornalismo, nem rádio havia, um retrato do espírito competitivo de então, em que era preciso dar a notícia primeiro. As coisas não mudaram, diria. Tanto Portela como Rocha Júnior eram literatos, além de jornalistas. Como ficcionistas, prefiro o homem do Diário de Notícias ao do Diário de Lisboa, o melhor jornal que já se fez entre nós.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

#12. JOÃO DE DEUS (Fialho de Almeida, 1857-1911)


 Meu amigo:

Pergunta-me o que penso de João de Deus e da sua festa. Vou dizer-lho em meia dúzia de palavras. Em João de Deus há três grandezas: a intelectual, sintetizada na Cartilha e em certos clarões da prodigiosa lucidez que aviva o seu cavaco; a afectiva, que está completa em quinze ou vinte composições da obra poética, e que são o que a poesia lírica conta de mais puro e belo na literatura de todo o mundo; e finalmente a moral, de que é penhor uma vida singularmente simples, e digna, pela perfeita coesão das virtudes, de servir de base a uma religião.

A ideia dum preito cívico a esta figura trìplicemente olímpica, e provàvelmente rara no mundo europeu contemporâneo, onde o método substitui o talento, o cabotinismo, a emoção, e onde a pureza moral (na maior parte dos casos) é apenas prospecto de egoísmos ferocíssimos, resume em si, sem dúvida, um grande uníssono de protesto contra a sórdida estupidez geral, e parece dum povo cioso de inaugurar na sua história, idades de oiro, e de reaver para si grandes fins de pensamento.

Partiu de rapazes, como era de ordem, e agregaram-se-lhe todas as unidades obrantes da nação. Quando isto vi, julguei chegado o dia inverosímil da justiça, e vim para a rua perscrutar no sacre do poeta a páscoa de espíritos tão cara aos meus sonhos de falansteriano enfermo de esperança. De todas as escolas do país viera mocidade, e nos ares troantes de vivório esvoaçavam capas e batinas sobraçando guitarras de faias e presuntos suprimidos no restaurante do Entroncamento. escutei as canções: eram em vez de apoteoses ao poeta, roufenhos fados como as vielas conhecem, sentimentalizando o crime e o rameirismo, dizendo injúrias aos passantes, confundindo democracia com anarquia; e em evangelho, como hausto de independência juvenil, um esbandalhamento parvo e de mau gosto. De sorte que os laços no ombro, em vez de especialidades científicas pareciam antes assinar ganadarias; mas podia ser que assembleiada no cenáculo, toda aquela dispersão de senso usual viesse a furo, despejando as almas do apostema trocista -- tão fora de propósito! -- e resgatando a deplorável demência por algum repto literário onde a mocidade provasse ter vindo à festa imbuída da realeza sem par do egrégio festejado. Ah, meu amigo! que vai você dizer se eu lhe contar que todo esse triplo extracto de campeões futuros da pátria portuguesa, é bem melhor à viola que ao discurso, lançando capas à Palmira Bastos, do que explicando a obra do João; alguns nem lhe sabiam o nome, diziam João dos Dedos; e quando por entre os discursos parolosos da solércia idiota dos loquazes, advieram poetas a enramar-lhe a fronte de lauréis, não imagina você que poesias, e como à desvergonha de ignorar o mestre, se jungia o escárnio de lhe cuspir o génio em versos de cordel! 

Não tenho tempo para circunstancialmente esmiuçar tudo o que vi, mas sempre lhe direi que nas festas do João só me pareceu de boa-fé o festejado.

O resto, amigo, é parasitismo desabusado e eterno dos mexilhões no casco dos navios: uns, doidivanas, caçando no aniversário pretextos de bródio e vadiagem ruidosa -- caso dos escolares; outros, cabotinos, à coca de especular coa glória alheia, e refiro-me aos ministros, ao rei, e aos literatos, que nesta comédia desenvolveram uma sofrível falta de pudor; e finalmente -- esse fundo de população sem pátria moral, cobardia, ignorante e esparvoída, que grita quando ouve gritar, diz mal quando ouve dizer, e se chama o público, e é por toda a parte lama, lixo e escória desprezível.

-- Que deu afinal a festa do João? dirá você. Berros, falta de loiça nas casas de pasto, e a aptidão reconhecida da mocidade escolar para os serviços do tiro, o que aproveita talvez á companhia dos americanos. Consequências literárias: a influência das Flores do Campo na poesia nacional seguirá nula; à uma o público não o conhece, a sensibilidade lírica embotou-se e fez lugar aos grosseiros apetites; e por outro lado falta talento entre os poetas, deram em imitadores e nem sequer tiveram a probidade. Consequências pedagógicas: as poucas pessoas que ele ensinou a ler vão-no esquecendo, pois, com a literatura da terra, não saber combinar o alfabeto é estar preservado dum contágio. Consequências morais, inda piores e mais contraproducentes; com a sua isenção das grandezas, o desprezo do dinheiro, e a nivelação de todos perante a confiança e bondade do seu trato, João de deus é um ser quase prejudicial no meio contemporâneo, e vale-lhe a reclusão: aliás já um decreto o teria suprimido por adversário das instituições.


Nota - Do livro póstumo Figuras de Destaque (1924), um extirpar de escrófulas com incisão de bisturi sem anestésico, uma violência inaudita, que nem em Camilo ou Raul Proença, um desencanto feroz.