Ilya Eremburg e eu chegamos silenciosos de uma conversa com figuras gradas nos altos escalões a propósito de nosso amigo Jan Drda, atendendo pedido que ele me fez em Praga de onde venho para receber o Prêmio Internacional Estaline da Paz: o prêmio me credencia. Estamos em Janeiro de 1952, vinte graus abaixo de zero, vento gélido varre as ruas de Moscovo, emborcamos os cálices de vodca no apartamento da rua Gorki, Ilya me diz: Jorge, somos escritores que jamais poderemos escrever memórias, sabemos de mais. No abalo da conversa que acabamos de ter, balanço a cabeça concordando.
Afirmação categórica não impediu que, alguns anos depois, durante o período de Krushtchev, ao se abrir uma brecha no obscurantismo soviético, ao despontar de uma pequena luz no meio das trevas,o autor de Degelo publicasse sete tomos de memórias, sete, nada menos: no sétimo Zélia e eu figuramos, simpáticos personagens. E isso não é tudo, pois Irina me contou, em 1988, estar pondo em ordem os papéis do pai com o fim de editar vários volumes de memórias inéditas que ele não conseguiu publicar sequer durante a abertura de Krushtchev: Ilya sabia de mais.
Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e conseqüencias, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a se triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga conseqüência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotação, morrem comigo.»
Navegação de Cabotagem (1992)
Nota: Trata-se do primeiro fragmento destas memórias propositadamente desconjuntadas, que se lêem dum trago. Leio-o também como um aviso à navegação por ocasião da debâcle soviética, para quantos pudesse andar à cata de episódios sórdidos relacionados com o Partido -- a maiúscula e o sentido de compromisso mantêm-se. O mal-estar concentracionário do pesadelo estalinista -- é difícil imaginar algo tão avesso ao tropicalismo solar de Jorge Amado -- está bem vincado, não pelo que diz, mas pelo que transpira; não há nada mais desonroso do que ser considerado como um trânsfuga; e depois Jorge Amado, por generosidade ingénua e voluntarismo, foi um arauto desastrado desse mesmo estalinismo; e ele não o nega. Felizmente a sua obra em geral vale muito mais que isso; mesmo quando errado, esteve sempre do lado certo no que respeita ao seu Brasil. E é esse Brasil miscigenado, violento, alegre, injusto, brutal em tudo o que tem de bom e de mau; são obras-primas do romance como Mar Morto (1936), Gabriela, Cravo e Canela (1958) -- resposta elevadíssima do ponto de vista literário e ideológico a todos quanto, depois de O Mundo da Paz (um desastre propagandístico de louvação a Stalin, 1951) ou Os Subterrâneos da Liberdade (1954), veio clamar que Jorge se tinha aburguesado; se tal sucedeu ou não, é assaz irrelevante para o escritor, que é o que interessa; todavia se houve coisa de que el se não absteve foi o de travar, sempre, o bom combate. Tenda dos Milagres (1969) -- o primeiro que li, e parece que o seu preferido -- aí está para o demonstrar; a propósito do qual um crítico exigente exarou: "Jorge Amado em estado de graça".